Alterações na transmissão neural dos sinais dolorosos estão na base da fibromialgia, mas traços de personalidade, traumas e stress crônico ajudam a deflagrar a síndrome que afeta principalmente as mulheres
“Afinal de contas, o que eu tenho, doutor?” Durante muitos anos essa foi uma pergunta sem resposta para a advogada Sandra Kaufmann, 55 anos, que nos últimos 20 anos visitou dezenas de consultórios médicos em busca de um diagnóstico para suas dores crônicas e generalizadas. Na verdade, recebeu vários, até mesmo o de hipocondria, úlcera do estômago e acidente vascular cerebral. E não raras foram as vezes em que os médicos, depois de pedirem baterias de exames, concluíram que sua dor era “psicológica”.
Os sintomas de Sandra começaram depois do nascimento do terceiro filho: dores difusas e intermitentes em diferentes partes do corpo que, com o tempo, foram se tornando tão intensas que a impediram de trabalhar regularmente. Hoje ela tem um diagnóstico: fibromialgia – o que não significa que suas perguntas foram respondidas.
Por ser uma doença difícil de ser detectada e pouco conhecida, seus dados epidemiológicos fornecem uma idéia ainda imprecisa do quadro. Estudos feitos nos Estados Unidos e na Europa indicam que a doença afeta quase 6% dos pacientes dos consultórios de clínica geral, até 8% dos que se encontram hospitalizados e cerca de 20% das pessoas atendidas por reumatologistas. O problema predomina em mulheres (de 80% a 90% dos casos) com idade entre 30 e 60 anos, embora possa se manifestar também em crianças, adolescentes e idosos. Curiosamente, é mais comum nos estratos sociais e educacionais mais altos.
HIPERSENSÍVEIS
Como não se conhecem as causas da fibromialgia, os especialistas preferem chamá-la de síndrome. Além da dor generalizada, os principais sintomas são fadiga crônica, perturbações do sono, enxaqueca e aumento da sensibilidade tátil, visual, auditiva e olfativa. Alterações de humor, dificuldade de concentração e cólicas menstruais intensas também são comuns. Apesar de tudo isso, não existe um só exame laboratorial ou de imagem capaz de ajudar o médico no diagnóstico, que depende totalmente do seu faro clínico – razão pela qual não são raros os que não dão a devida importância às queixas das pacientes. Sandra é um exemplo disso. Ela viveu na pele as conseqüências da desinformação médica. “A pior coisa é você estar com o corpo doendo e o médico dizer que é efeito do stress, que eu só precisava de férias”, diz.
Negligenciada por décadas, a fibromialgia começou a ser estudada sistematicamente no fim dos anos 80 e não tardou muito para que os cientistas percebessem alterações nos mecanismos da dor. Estudos mostram que não há nada errado com o corpo dessas mulheres; o problema está no sistema nervoso central. Umas das primeiras evidências vieram da Universidade de Heidelberg, quando o neurobiólogo Siegfried Mense conseguiu induzir em ratos um conjunto de sintomas muito semelhantes do quadro fibromiálgico. Para isso ele inibiu, por meio de resfriamento, a transmissão dos sinais de dor conduzidos pela medula espinhal. Esperava-se que a sensibilidade fosse completamente inibida, mas não foi isso que aconteceu; os roedores ainda sentiam alguma coisa e continuavam se esquivando dos estímulos dolorosos.
Hoje a idéia mais aceita é a de que a fibromialgia está relacionada a uma maior sensibilidade ou, mais precisamente, a uma redução do limiar a partir do qual um estímulo é capaz de acionar os receptores de dor, que enviam esse sinal ao cérebro, o qual, por sua vez, interpreta a informação como um “Ai!”.
Estudos conduzidos pelo médico Zoltan Gerevich, da Universidade de Leipzig, mostram que o fenômeno tem como base alterações bioquímicas nos nervos periféricos que chegam à medula espinhal. Neles, determinadas moléculas receptoras regulam, em condições normais, a liberação do neurotransmissor glutamato, cujo efeito é a inibição da transmissão do sinal doloroso. Na ausência desses receptores, porém, sente-se uma dor difusa que parece ter origem nos músculos, ossos e tendões.
No entanto, a curiosidade dos cientistas não se deteve na medula e avançou para dentro do crânio com a ajuda da ressonância magnética funcional (fMRI). As imagens revelaram que o córtex sensorial primário – que recebe os sinais de tato e dor – é mais sensível aos estímulos periféricos nos pacientes com fibromialgia. Mais recentemente, uma revisão feita pela equipe do médico Richard Harris, da Universidade de Michigan, confirmou que, nesses pacientes, tanto as estruturas que transmitem quanto as que codificam a dor estão hiperativas. A genética estaria entre os principais fatores predisponentes, e aspectos emocionais estão, sem dúvida, envolvidos no desencadeamento do distúrbio, segundo os autores.
AUTOCRÍTICA
Depois de muita fisioterapia e diversos medicamentos, que sempre trouxeram alívio por tempo limitado, Sandra começou a fazer psicoterapia em grupo no laboratório de fibromialgia coordenado pelo médico Ulrich Egle, da Universidade de Mainz. Ao lado de oito pacientes ela participou dos debates e dos exercícios que tinham um objetivo específico: lidar melhor com as próprias emoções. Antes de começar a oferecer a psicoterapia, a hipótese de Egle era que as pessoas com essa síndrome poderiam ter passado por experiências traumáticas na infância, como violência física ou negligência. À medida que os grupos se sucederam, sua ideia foi confirmada e ele percebeu que quase todos os pacientes justificavam seu problema como algo “herdado” da família. Isso poderia explicar, segundo o pesquisador, por que a fibromialgia afeta mais as mulheres, uma vez que elas estariam mais expostas que os homens a traumas infantis. Além disso, o ciclo hormonal também poderia contribuir para a oscilação emocional e a susceptibilidade ao stress.
Há ainda outras características comuns nas mulheres com fibromialgia. “Baixa auto-estima, perfeccionismo, autocrítica severa e busca obsessiva do detalhe compõem o perfil psicológico dessas pacientes”, conta Egle. É muito freqüente ouvir delas que as dores começaram após eventos radicais ou repentinos, como desemprego, morte na família e separação.
Outro aspecto que intriga os especialistas é a relação entre fibromialgia e distúrbios do sono. Ninguém sabe o que é causa e o que é consequência. “A maioria dos pacientes diz que dorme mal por causa das dores”, diz o reumatologista Michal Späth, da Universidade de Munique. “Em contrapartida, o tratamento dos distúrbios do sono geralmente traz alívio considerável para os outros sintomas.”
A fibromialgia geralmente está associada a alterações no estágio 4 do sono de ondas lentas, também conhecido como não-REM, o que se reflete num sono superficial e não restaurador, conforme relatam os pacientes. Experimentos com voluntários nos quais foi induzida privação desse estágio acarretaram fadiga crônica e dores generalizadas. Späth alerta, porém, para o fato de que até 50% das suspeitas de fibromialgia não se confirmam. Isso porque pessoas submetidas a stress crônico parecem desenvolver sintomas semelhantes aos da síndrome, os quais se manifestam ou se intensificam justamente na hora de dormir.
Psicoterapia
Medicamentos analgésicos e anti-inflamatórios raramente fazem efeito. As drogas de escolha costumam ser os antidepressivos, mas sua eficácia só é percebida em parte das pessoas em tratamento. Späth não abre mão da psicoterapia para seus pacientes e dá mais atenção ao lado emocional do que propriamente aos sintomas físicos. Entretanto, o reumatologista vê limitações na eficácia de métodos alternativos, como banhos com água quente e fria, acupuntura e massagem. “Embora tragam algum alívio, os resultados não se mantêm a longo prazo”, afirma. Sandra, por exemplo, é tratada com acupuntura há dois anos, mas reconhece que os efeitos já não são tão bons quanto no início.
O fato é que, apesar dos avanços nas pesquisas sobre essa síndrome nos últimos 20 anos, ninguém tem uma ideia clara sobre suas origens. Para alguns cientistas, o distúrbio do sono é mais causa do que consequência. Outros acreditam que a fibromialgia seja deflagrada por uma infecção viral ou bacteriana, ou por alguma lesão na região superior da medula espinhal. Algumas pesquisas investigam possíveis anormalidades no sistema nervoso autônomo e no metabolismo muscular desses pacientes.
Já os resultados da terapia em Mainz parecem promissores. De 80 participantes, dois terços reconhecem os benefícios do tratamento e metade ficou quase um ano praticamente livre das dores. Sandra está no grupo dos aliviados: “Antes, quando eu me irritava com as crianças, sentia aquela dor forte, como um puxão”, recorda. “Hoje vivo muito mais relaxada.” Desde então ela voltou a trabalhar meio período, o que melhorou muito sua qualidade de vida e seu relacionamento com a família. Além disso, agora ela consegue enfrentar os problemas do dia-a-dia com mais serenidade, sem se deixar irritar pelas pequenas adversidades. O marido e os filhos são testemunhas da lenta transformação: antes Sandra não suportava ver qualquer coisa suja na pia da cozinha e cobrava deles mais disciplina. Hoje esse tipo de situação já quase não lhe dói mais.