O ar que respiramos é invisível. Ainda assim, como sabemos, sentimos em
nossa respiração. Algo semelhante pode ser dito sobre a Fibromialgia:
uma condição marcada por dor crônica em várias partes do corpo, que
segundo estimativas da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR),
ocorre em 3% da população do País, número que equivale a cerca de sete
milhões de pessoas. Não por acaso, 12 de maio é considerado o Dia
Mundial da Fibromialgia, data que no Recife, de acordo com a Lei nº
18.236/2016, marca o início da semana de conscientização e enfrentamento
da doença.
“A gente sabe que existe um transtorno de percepção
da dor. A pessoa sem fibromialgia percebe e sente a dor de uma
determinada forma. A pessoa que tem fibromialgia percebe a mesma dor de
outro jeito. Existem alterações no sistema nervoso central, em
neurotransmissores, que nos mostram que a pessoa com fibromialgia sente
uma dor mais intensa do que realmente deveria. E às vezes ela sente dor
mesmo quando não é para sentir”, explica a médica reumatologista e
coordenadora do Ambulatório de Fibromialgia do Hospital das Clínicas
(HC-UFPE/Ebserh), Aline Ranzolin.
Mesmo com a lei, a Secretaria
de Saúde do Recife informou que não há ações de conscientização prevista
para ocorrer. Apesar dos poucos dados disponíveis sobre a doença, quem
convive com a síndrome faz uma queixa única: dores intensas no corpo
todo. É o caso da pedagoga Anelly de Alencar, 39 anos, que há treze anos
recebeu o diagnóstico clínico de que era uma paciente fibromiálgica.
“Sete
meses depois do nascimento do meu segundo filho, eu comecei a sentir
muitas dores. Eu ia para a emergência e os médicos sempre passavam
remédios paliativos. Diziam que era estresse ou tensão. As dores eram em
todos os pontos do corpo. Às vezes doía em um certo lugar, por exemplo,
no quadril. Mas não que eu não sentisse nos outros lugares. Às vezes
doía mais na perna. Foi quando me indicaram procurar um reumatologista.
Daí, ele me pediu vários exames e diagnosticou a fibromialgia”, conta
Anelly.
Segundo dados da Sociedade Brasileira de Reumatologia, a
doença acomete mais mulheres que homens e costuma surgir entre os 30 e
55 anos. Junto com a dor, surgem outros sintomas, como explica a médica
Aline Ranzolin, que desenvolveu pesquisas na área e há mais de uma
década está à frente do Ambulatório de Fibromialgia do HC.
“A
fibromialgia é uma doença, é uma síndrome de dor crônica difusa. Essa é a
principal característica dela. Se for uma dor de menos de três meses,
caracteriza uma dor não crônica, já não é fibromialgia. Se for uma dor
que é só na coluna ou só na perna, também não. A segunda característica
dela, é que junto com a dor, são sintomas muito frequentes: o distúrbio
do sono, um sono que é considerado não reparador, onde a pessoa acorda
com a sensação de que não dormiu bem; Tem fadiga intensa, uma sensação
de muito cansaço no corpo, mesmo sem ter feito nenhum esforço físico; Há
o formigamento e a dormência, em que a gente chama isso de parestesia. E
também é muito frequente a associação do transtorno de ansiedade e
depressão”, explana a médica.
Aline Ranzolin, médica reumatologista e coordenadora do Ambulatório de
Fibromialgia do Hospital das Clínicas (HC-UFPE/Ebserh). (Arquivo
pessoal/Divulgação)
Apesar da depressão, ansiedade e da fibromialgia serem condições
clínicas diferentes, a especialista observa que mais de 50% dos
pacientes fibromiálgicos apresentam ambas as condições, que atuam como
um círculo vicioso, piorando a intensidade da dor.
“Há um
percentual em torno de 60% dos pacientes que vão ter depressão ou
ansiedade, ou às vezes até as duas coisas. Mas existe um percentual de
30% que não tem nenhum dos dois. Não é obrigatório ter um transtorno de
humor para ter fibromialgia. Mas realmente é muito frequente. Às vezes a
gente vê a ansiedade, e depois a dor, ou se a pessoa já tem a dor, e
associa com o transtorno de ansiedade”.
Esse também é o caso de
Anelly, que revelou que ao receber notícias inesperadas ou vivenciar
situações de estresse, aumentam as dores que sente no corpo. “A
fibromialgia em mim tem muito a ver com meu sistema emocional. Quando eu
tenho raiva ou fico estressada, e às vezes, até quando tenho uma
felicidade muito grande, eu começo a sentir as dores”, conta a pedagoga.
Aspectos psicológicos
A
reumatologista explica que a interpretação da dor no cérebro sofre
várias influências, dentre elas das emoções. Segundo a médica, no
entanto, as emoções positivas, como alegria e felicidade, tendem
comumente a diminuir o desconforto da dor e as negativas, como tristeza e
infelicidade, tendem aumentar o desconforto.
“Não há uma
explicação muito clara do porquê as duas coisas vem juntas. Se formos
pensar que várias doenças crônicas dolorosas, tanto a ansiedade quanto a
depressão, elas são mais frequentes nessas doenças mesmo sem ser a
fibromialgia. Se acredita que a dor crônica, uma pessoa que sente dor
todos os dias durante muitos meses, e anos da sua vida, é um fator de
risco para que elas venham a ter um transtorno de ansiedade associado”.
“Então
essa alteração do processo da dor no sistema nervoso central, a gente
já sabe que acontece em fibromialgia. Existem alguns fatores que
acontecem ao longo da vida e que podem ser o gatilho para começar com a
doença. Às vezes é um estresse emocional muito grande, ou um estresse
físico. Às vezes é uma outra doença reumatológica. E muitas vezes a
gente não tem uma explicação, do porquê que aquela doença se
desenvolveu”, complementa a médica.
Psicóloga Marília Franklin realiza atendimentos numa clínica da Zona Sul do Recife. (Arquivo pessoal/Divulgação
)
Para a psicóloga Marília Franklin, que
faz atendimentos numa clínica da Zona Sul do Recife, a melhor forma de
lidar com a depressão e transtornos de ansiedade é manter o controle dos
sintomas. “É preciso compreender o indivíduo dentro de um olhar
sociopsicossomático, não só desse conjunto de sintomas, mas como uma
manifestação dos conflitos internos e percepções da sua própria
história”, explica.
“Devido as dores crônicas, é muito comum que a
fibromialgia leve a anormalidades no sistema nervoso, mudando a forma
de como a pessoa lida com o estresse. Como por exemplo, a fadiga
constante, gerando isolamento de atividades, e abrindo ‘portas’ para a
ansiedade. Tudo isso permeia sentimentos de culpa e muitos outros
sintomas que desencadeiam a depressão”, complementa.
Para tal, o
tratamento através da abordagem sociopsicossomática, a área que estuda,
avalia e interpreta as alterações e o comportamento do corpo e da mente,
é fundamental, como explica a psicóloga: “Uma das alternativas para
tratamento sem dúvida é a psicoterapia, dentro de uma experiência
terapêutica, favorecendo assim a reorganização e o funcionamento mais
integrado de si mesmo, reconhecendo sua emoções e potencialidades para
ressignificar a sua própria história de vida. Também fazem parte do
tratamento a fisioterapia, técnicas de relaxamento e a prática de
exercício para redução do estresse que podem ajudar no controle dos
sintomas”.
Diagnóstico e tratamento“Até
ter sido diagnosticada, eu nunca tinha ouvido falar na doença. O meu
médico, na época, me deu um bloquinho para eu poder ler e entender sobre
a fibromialgia. Eu tenho até hoje”, lembrou Anelly. Como alguns outros
problemas podem acompanhar a fibromialgia como depressão, ansiedade,
alterações intestinais ou urinárias e dor de cabeça frequente, o
diagnóstico é feito a partir de exame clínico, conforme explica a médica
Aline Ranzolin.
“Normalmente a gente faz uma consulta
completa, para entender como é o processo da pessoa e se os sintomas são
compatíveis, e a gente solicita alguns exames para descartar outras
possibilidades. Pois, às vezes, a fibromialgia pode encobrir outras
doenças. Descartando as outras possibilidades, e o paciente tendo
fibromialgia, a gente parte para o tratamento”.
Pedagoga Anelly de Alencar tem fibromialgia. (Arquivo pessoal/Divulgação)
Para a médica, mais do que em outros problemas, o tratamento da
fibromialgia depende muito do paciente. “A primeira coisa para o
tratamento é a conscientização. A educação para entender sobre a doença,
as limitações e as não limitações, e tentar aceitar e entender o seu
diagnóstico para que sua vida seja adaptada a uma nova condição de que
algumas coisas não vão ser possíveis ser feitas da forma que eram”,
explica.
É o que fez Anelly, ao se deparar com o diagnóstico da
doença. “Antigamente, assim que eu descobri, eu pensei que tinha uma
doença grave, pois ninguém descobria o que era e eu sentia muita dor. Já
hoje em dia eu tenho consciência do que tenho, apesar de não ter o
controle, mas tenho consciência e faço por onde diminuir essas dores,
seguindo as recomendações médicas”, conta.
Crenças limitantes
Para
a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), os exercícios aeróbicos,
de fortalecimento e de alongamento, como caminhadas ou hidroginástica,
são determinantes para a melhora dos sintomas associados.
“É
impossível tratar um paciente com fibromialgia sem exercício físico. É
uma coisa que a gente orienta, mas quem tem que executar é o próprio
paciente. Às vezes não é muito fácil em função da dor e das crenças
limitantes, que muitos pacientes às vezes tem. Por que a fibromialgia,
como ela não causa nenhuma alteração objetiva no corpo, então não tem
deformidade, não vai ser cadeirante, não vai evoluir com artrite, nada
disso. Existe uma crença de que ‘Ah, eu não consigo fazer’ ou ‘Eu não
posso fazer’, mas se consegue, sim, na maioria dos pacientes, uma
progressão de atividade física e isso em longo prazo é o melhor
tratamento que se tem para a fibromialgia”, pontua a médica Aline
Ranzolin.
Além das atividades físicas, o uso de medicamento
também pode ser uma alternativa. “Alguns medicamentos podem se fazer
uso, para ajudar o paciente a lidar com a dor, com a alteração do sono,
com a fadiga, com a própria depressão e ansiedade. Muitas vezes a gente
precisa usar uma medicação para ajudar nesse sentido, porque se a
depressão e a ansiedade estão muito ruins, a dor piora. Então existem
várias abordagens num tratamento: as medicamentosas e as não
medicamentosas. A fibromialgia não é um bicho de sete cabeças. Tem
tratamento e as pessoas realmente melhoram, principalmente quando elas
de fato aderem”.
Denúncias
Apesar de existirem estudos
sobre a síndrome, e uma aceleração na identificação da doença nos
pacientes, a reumatologista Aline Ranzolin ressalta que o atraso no
diagnóstico na fibromialgia ainda é muito grande. “Os pacientes levam de
quatro a cinco anos até chegar num diagnóstico”. É o que também aponta a
Associação Brasileira dos Fibromiálgicos (Abrafibro), que alertou que
muitos pacientes que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), podem
passar anos para obter o diagnóstico.
"O paciente fibromiálgico
brasileiro está abandonado. Sem tratamento é inviável ter condições de
manter o emprego (pelo alto índice de faltas ao trabalho). O INSS não dá
o reconhecimento necessário ao fibromiálgico. Não concede Benefícios
Previdenciários por falta de comprovação em exames laboratoriais ou de
imagem. Vale esclarecer que o diagnóstico é essencialmente clínico.
Diante deste cenário, nossas lutas são grandes por políticas públicas
inclusivas, tratamento interdisciplinar e multimodal em Centros
Reumatológicos. E o INSS precisa criar critérios de exame pericial aos
pacientes com doenças invisíveis, como é o nosso caso. Isenções fiscais,
direitos iguais aos deficientes físicos, e principalmente respeito e
dignidade”, escreveu à
reportagem, a Presidente e Fundadora da Abrafibro, Sandra Santos.
Segundo
a Associação, a portaria Nº 1083, de 02 de outubro de 2012, que trata
das diretrizes para o tratamento pelo SUS, está passando por atualização
desde o ano passado. “Isso poderá possibilitar a oferta de medicamentos
e técnicas mais atuais e eficazes. Infelizmente, a oferta de tratamento
psiquiátrico e psicológico, de extrema importância, e de profissionais
da Educação Física e Fisioterapia também não atendem à demanda”,
indicou.
A presidente da entidade também lamentou não existir a
obrigatoriedade de comunicação aos órgãos públicos de Saúde, de
pacientes diagnosticados e nem haver dados epidemiológicos nos estados
brasileiros, sobre a doença. “Enfrentamos ainda o problema quanto ao uso
do CID 10 (Código Internacional de Doenças 10ª versão) correto para
Síndrome de Fibromialgia. O correto é M79.7, e há profissionais que
ainda usam M79.0. Isso dificulta o levantamento de dados concretos”,
pontua.
PerspectivasTal qual o oxigênio, que é
invisível e o respiramos, a fibromialgia é a dor que existe e que não
enxergamos. Anelly, em sua jornada com a doença, se mantém resiliente
com a condição incurável, e deseja para este dia de Conscientização e
Enfrentamento a Fibromialgia, mais empatia.
“As pessoas ainda não
tem muita consciência sobre o assunto. Muita gente acha que eu invento
que estou com dor e não acreditam, na verdade. Eu sinto dores todos os
dias. É uma dor que eu já me acostumei com ela. É uma dor na perna, no
quadril, uma dor cansada. Mas quando eu entro em crise, eu sinto tanta
dor, que eu não consigo ficar parada e fico mexendo meu corpo. As
pessoas tendem a achar que isso é coisa da minha cabeça, como não é uma
dor visível, não acreditam. Muitas pessoas acham que estou aumentando a
dor que estou sentindo. Só tem noção que passa, sempre falo isso”,
alerta.
“O dia-a-dia da gente, principalmente quando trabalhamos,
tem problemas, a gente se estressa, e acontecem coisas que levam a
gente a ter crises. Então, eu aprendi a conviver, tomar o medicamento,
seguir as orientações que o médico passa, ter atividade física e
acompanhamento psicológico e conviver com a dor”, finaliza.
texto original
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2021/05/fibromialgia-a-resiliencia-de-quem-convive-com-uma-doenca-invisivel.html